Saúde pública

Mais de 60,2 mil pacientes aguardam consultas, exames e cirurgias em Pelotas

Só para ultrassons são mais de 12,3 mil pessoas na fila; área de traumatologia é a que representa o maior acúmulo

Paulo Cézar Nunes, 65. Ângela Cardoso da Silva, 52. O que esses dois nomes têm em comum? A incerteza de quando serão atendidos. Ao todo, 60.275 pacientes estão à espera de consultas, exames e cirurgias pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em Pelotas. É uma demanda reprimida que já existia, mas foi ampliada durante os mais de dois anos de pandemia. Se considerados os moradores da região que aguardam para realizar os atendimentos por aqui, a lista é ainda maior: são outras 15.208 pessoas. É um cenário composto por angústia, agravamento de quadros, desistências e mortes.

A própria Secretaria Municipal de Saúde admite: com exceção das cirurgias de traumatologia - que registram o maior acúmulo entre as operações -, em todos os outros casos, os dados já podem ter mudado. E uma das causas são justamente os óbitos. O Ministério Público (MP) acompanha o panorama e já possui expedientes abertos para monitorar o andamento de dois tipos de exames: ultrassonografias - o campeão da lista - e eletroencefalogramas em sono.

"Fazemos contatos diários com a Secretaria. Através dos expedientes, buscamos verificar quais os locais conveniados, a oferta disponível e de que forma darão prioridade", ressalta o promotor de Justiça, Fernando Gerson. E lembra que, para se antecipar aos problemas que estão por vir ao longo do inverno, o MP já tem cobrado informações sobre a estrutura aos atendimentos respiratórios e pulmonares.

Confira os dados (*)

Consultas: 35.629
- Pelotas: 30.680
- Região: 4.949
* As maiores demandas:
- Traumatologia: 3.526
- Fisiatria/fisioterapia: 3.149
- Urologia: 2.841
- Neurologia: 1.780
- Cardiologia: 1.707
- Ginecologia: 1.692

Exames: 37.666
- Pelotas: 27.407
- Região: 10.259
* As maiores demandas:
- Ultrassom: 12.320
- Mamografia: 3.095
- Colonoscopia: 2.315
- Endoscopia: 1.085
- Eletroencefalograma em sono: 145

Cirurgias: 2.188
Entre Pelotas e Zona Sul
* As maiores demandas:
- Traumatologia: 1.004
- Colecistectomia: 358
- Urologia: 190

(*) Dados da Secretaria de Saúde são o acumulado de janeiro de 2019 a março de 2022

Cânceres chegam em estágio mais avançado

Ainda não há dados locais à disposição, mas o dia a dia de contato direto com os pacientes é o suficiente para afirmar: os efeitos dos dois anos de pandemia - e o isolamento mais rigoroso, imprescindível para prevenção da Covid-19 - podem ser percebidos em cânceres identificados em estágio mais avançado. "Temos total preocupação com os casos que temos recebido", destaca a médica oncologista do Hospital-Escola (HE-UFPel), Sílvia Saueressig.

Se historicamente o Brasil já não possuía o rastreio necessário, que permitisse o diagnóstico precoce - fundamental para a chance de cura -, o cenário ficou ainda mais delicado com a população longe de consultórios, clínicas e hospitais para tentar driblar o coronavírus. Em alguns momentos, exames como a colonoscopia, essencial para identificar o tumor colorretal, deixaram de ser realizados pelos próprios prestadores de serviço, já que depende de anestesia e havia limitação de anestésicos para combater a Covid-19. Hoje, inclusive, as colonoscopias são o terceiro tipo de exame com maior demanda acumulada: 2.315 pessoas na fila.

Um outro fator também ajuda a explicar os cânceres mais avançados, principalmente entre os idosos. Diante da necessidade de preservá-los da Covid-19, os familiares não estavam por perto para percepção de sintomas que já poderiam estar associados ao câncer. "A pandemia acabou retardando a observação e confundiu. A própria depressão e a apatia, que podem ser sintomas, foram interpretadas como tristeza por não estar convivendo com filhos e netos", destaca a médica.

O desafio, agora, está em facilitar e agilizar o acesso a consultas, exames e cirurgias, para tentar estancar os prejuízos. Balanço divulgado pelo Instituto Nacional do Câncer (Inca) indica a queda na busca por atendimentos, se comparados os períodos de 2019 e 2020. Nas mamografias de rastreamento, a redução foi de 42,6%: passou de 3.810.427 exames para 2.186.371 em todo o país. No caso dos citopatológicos, a diminuição foi ainda maior: atingiu 44,5%; caiu de 8.448.737 coletas de pré-câncer de colo de útero em 2019 para 4.681.051 em 2020. As biópsias são mais um termômetro para indicar a queda dos diagnósticos precoces. Antes da pandemia, foram realizadas 729.399. Já em 2020, o número ficou em 471.702. É o equivalente a 35,3% a menos em todo o território nacional.

Espera já ultrapassa um ano e sete meses

O uso de remédios para dor tem sido cada vez mais frequente. Nos últimos meses, uma muleta virou estratégia para tentar amenizar o desconforto e manter o equilíbrio. As sessões de fisioterapia ocorrem três vezes por semana. E o sentimento tem sido o mesmo: incerteza. O soldador aposentado Paulo Cézar Nunes, 65, recebeu o diagnóstico em 2 de setembro de 2020: osteoartrose avançada das articulações coxofemorais, particularmente à direita. E a solução para o desgaste é a colocação de uma prótese no quadril.

"Sei que o meu nome tá no sistema e a fila é enorme. Mas só queria saber se andou 'meia casa'", descontrai. A família chegou a realizar levantamento para ter ideia de quanto precisaria desembolsar e o valor é completamente fora da realidade financeira: cerca de R$ 17 mil. Ao pensar na hipótese de fazer uma vaquinha para realizar o procedimento, Nunes assume: sente-se constrangido. É como se tivesse furando a fila, para passar na frente de alguém que esteja, eventualmente, em situação mais urgente - explica.

"Mas, se Deus quiser, pode ser que a coisa ande. Enquanto isso, vou ficando só na volta de casa", afirma. É um esforço dobrado para quem sempre foi ativo. Lateral-direita da Portuguesa Santista, de futebol amador, ele precisou deixar de lado as partidas. "Sinto muita falta de correr atrás da bola".

Além do câncer de mama, urologista também é urgente

O foco deveria ser o tratamento do câncer de mama. Desde que recebeu o diagnóstico, há cerca de quatro anos, Ângela Cardoso, 52, já perdeu as contas de quantos exames pagou, na ânsia de agilizar os resultados. Em 2022, não foi diferente: demora e preocupação. A dona de casa precisou obter com a Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (Famed-UFPel) a comprovação de que a mamografia estava agendada. Na Secretaria de Saúde, o protocolo aberto em 1º de outubro de 2021 não teria sido encontrado - conta.

Em meio à confusão de informações e com a consulta com mastologista agendada, Ângela acabou procurando o Instituto Buquê de Amor (IBA). Deu certo: conseguiu apoio para realizar os exames, rapidamente. Mas o tempo já havia corrido. O retorno ao especialista precisou ser transferido de 29 de março para 10 de maio. E nesse desencontro de datas e acesso a resultados, o ultrassom também deixou de ser realizado via prefeitura. "Quando me ligaram na semana passada, para avisar do ultrassom, eu expliquei que precisava estar com o resultado da mamografia. E isso tudo só aconteceu por causa da confusão que eles armaram lá na Secretaria de Saúde, quando disseram que a mamografia tinha sido cancelada", sustenta.

E agora, com os exames de mamas garantidos, a moradora do Py Crespo volta-se à velha demanda: conseguir consulta com urologista; a terceira especialidade com maior acúmulo em Pelotas. Em 2017, pouco antes de diagnosticar o câncer, Ângela soube de um cisto no rim. De lá para cá, claro que as atenções se direcionaram a combater a doença. Mas não dá para esquecer o cisto. "Preciso de uma biópsia do rim, porque o caso da mama tá controlado, mas aquilo lá eu ainda não sei o que é. E sou uma paciente oncológica", alerta, ainda que já não possua data nem número de protocolo de quando passou a esperar pelo atendimento.

Promessa é de zerar exames

A fase é de tratativas entre a Secretaria Municipal de Saúde e os prestadores de serviço, com objetivo bem definido: zerar os cinco tipos de exames que estão com maior demanda: ultrassom, mamografia, colonoscopia, endoscopia e eletroencefalograma em sono que, juntos, geram uma fila de 18.960 pessoas (veja detalhes acima). O alvo também estará direcionado a deslanchar as 1.004 cirurgias traumatológicas represadas. A secretária Roberta Paganini não arrisca prazos, mas afirma: "Estou muito otimista. Estamos com boas negociações e acredito que vá andar". É o que a comunidade também espera. E precisa que aconteça.

O programa Saúde Ativa deve ser a principal ferramenta para elevar os atendimentos e complementar o que está contratualizado. Mais de R$ 2,8 milhões devem ser investidos, até outubro de 2022, e assegurar a realização de 11.136 procedimentos. Não é o suficiente para eliminar o acúmulo, mas garante ampliação da oferta. Com a defasagem da tabela SUS, não raro, os prestadores realizam o mínimo da capacidade para manter o contrato com o Município e provocar o menor prejuízo financeiro possível.

No caso das consultas com especialistas, por exemplo, o valor pago pelo SUS é de apenas R$ 10,00. Em exames como ultrassom, o repasse também é ínfimo: oscila entre R$ 26,00 e R$ 30,00. E para dar a fluidez tão aguardada, o Saúde Ativa efetua o pagamento de incentivos para a prestação de serviços se tornar mais atrativa. Nas ultrassonografias, por exemplo, o plus é de R$ 80,00. Para poder acessar os adicionais, entretanto, os prestadores devem cumprir metas como realizar 100% do que já está estabelecido nos contratos habituais.

E o alvo vai mudando, claro, conforme a demanda é zerada. Foi o que ocorreu ao longo de 2021, com 5.524 tomografias computadorizadas e 1.320 ressonâncias magnéticas. "Nossa prioridade neste momento é zerar exames e cirurgias, para poder dar vazão e, depois, poder fazer um esforço concentrado também nas consultas", explica a secretária. E admite: "Sabemos que esta demora tem um custo social e assistencial, que não temos como dimensionar. Além da dor dos nossos usuários, os próprios tratamentos tornam-se muito mais caros, com o agravamento dos quadros".

O papel do Conselho Municipal de Saúde 

Com o papel de fiscalizar para que a contratualização firmada entre a prefeitura e os prestadores de serviço - com peso importante aos hospitais - seja cumprida, o Conselho Municipal de Saúde fica entre duas pontas igualmente descontentes. De um lado, os prestadores não se sentem motivados a ampliar a oferta, devido à velha defasagem da tabela SUS. De outro, os próprios cidadãos e cidadãs que utilizam o sistema público já não acreditam no bom funcionamento.

"Estamos agarrados na mesma corda e precisamos procurar, juntos, a solução, independentemente de bandeira partidária", ressalta o presidente César Lima. "Não temos uma fórmula mágica, mas estamos buscando a interlocução para que o SUS seja ágil, bem feito e da forma que a lei manda".

O compromisso do Ministério Público 

A Promotoria não tem a atribuição de atuar em causas individuais. O MP entra em ação em nome do interesse coletivo. Por isso, quando acionado por cidadãos, ansiosos em solucionar seus casos específicos, em geral, o atendimento ocorre e é repassado à Defensoria Pública. Se as queixas de uma determinada situação tornam-se recorrentes, acende o sinal de alerta. E é hora de o Ministério Público cobrar esclarecimentos para que os direitos da comunidade sejam respeitados. "É um trabalho silencioso, que não para nunca", assegura Gerson.

 

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